“♫ A gente vai contra a corrente/ Até não poder resistir/ Na volta do barco é que sente/ O quanto deixou de cumprir” (Roda viva; Chico Buarque).
Nos últimos anos, pais e educadores (inclusive eu) têm repetido uma recomendação quase como um mantra: reduzir a presença das telas na vida das crianças. Organizações internacionais de saúde orientam que bebês e crianças pequenas não devem ser expostos a celulares, tablets ou televisores. Para os adolescentes, os limites de tempo e a supervisão ativa são vistos como indispensáveis. A lógica é simples: excesso de telas está ligado a dificuldades de atenção, problemas de sono, impactos no desenvolvimento emocional e até riscos de dependência digital.
No entanto, assim como ocorre com a alimentação saudável, essa recomendação esbarra no abismo social que separa os que podem colocar em prática os conselhos dos especialistas daqueles que, por condições econômicas e de vida, não têm escolha.
Os alimentos ultraprocessados e as telas
No campo da alimentação, sabe-se que famílias de baixa renda acabam oferecendo alimentos ultraprocessados aos filhos porque são mais baratos, duram mais tempo e exigem pouco preparo. A mãe que passa o dia inteiro no transporte público, somado a horas de trabalho exaustivo, dificilmente terá energia física e mental para descascar legumes ou preparar uma refeição fresca e saudável à noite. O pacote de bolacha recheada ou o macarrão instantâneo com o suco artificial de pacotinho parecem, nesses contextos, soluções práticas e inevitáveis.
Com as telas o mecanismo é semelhante. Famílias com melhores condições financeiras conseguem matricular os filhos em cursos de música, esportes, artes e proporcionar convivência social em ambientes seguros. Dispõem também de tempo para acompanhar de perto as atividades escolares, supervisionar o uso do celular e oferecer alternativas saudáveis de lazer. Os pais têm mais tempo para viabilizar uma relação saudável com os filhos com brincadeiras físicas ou jogos de tabuleiro, ou mesmo lendo ou divagando em conjunto.
Já nas famílias mais carentes, a realidade é outra. Muitas vezes, o celular é o único recurso de entretenimento acessível. Em bairros periféricos, manter a criança dentro de casa conectada a aplicativos gratuitos como o YouTube ou o TikTok pode ser visto como uma forma de proteção: melhor o filho ficar no sofá do que exposto ao crime, às drogas ou a situações de violência nas ruas. O celular, nesse sentido, não é apenas um passatempo; é uma estratégia de sobrevivência em um ambiente hostil.
É nesse contraste que se revelam mais claramente o abismo e a injustiça sociais: combater as telas exige tempo, dinheiro e estrutura. Exige que os pais tenham condições de estar presentes, de oferecer alternativas culturais e esportivas, de substituir o virtual pelo real. Quando isso não existe, o discurso do “menos telas” soa como privilégio de poucos. E é.
Os impactos silenciosos
Essa diferença de acesso gera impactos profundos e silenciosos. Enquanto crianças de famílias mais ricas podem desenvolver habilidades sociais e cognitivas em ambientes presenciais, as de famílias com menos condições acabam crescendo em bolhas digitais, muitas vezes expostas a conteúdos inadequados e sem acompanhamento. O resultado é a ampliação do fosso educacional e social, não apenas pela escola precária, mas também pelo tipo de infância que cada grupo pode oferecer.
A questão, portanto, não é apenas orientar pais a restringirem telas, mas discutir políticas públicas que tornem isso viável. Espaços culturais, esportivos e de lazer acessíveis, bibliotecas comunitárias, projetos de contraturno escolar e até campanhas de conscientização precisam entrar no debate. A tecnologia não pode ser o único brinquedo possível para milhões de crianças.
Combater o uso excessivo de telas é, sem dúvida, necessário. Mas ignorar que, para muitas famílias, o celular representa o “prato feito” do entretenimento infantil é fechar os olhos para a desigualdade. Assim como com a alimentação saudável, só haverá mudança real quando a sociedade, como um todo, oferecer condições para que todas as crianças possam crescer além das telas.
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