Especialistas ouvidos pela Gazeta do Povo explicam que a decretação da prisão domiciliar do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), não tem a ver com o processo que investiga a suposta tentativa de golpe de Estado. A decisão está relacionada com o inquérito que investiga um dos filhos de Bolsonaro, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP), que está nos Estados Unidos desde março em busca de sanções contra autoridades brasileiras sob a justificativa de defesa das liberdades individuais, liberdade de expressão e por causa da perseguição política contra a família Bolsonaro e aliados.
Como um desses efeitos, na semana passada, Moraes foi sancionado pela Lei Global Magnitsky pelo presidente americano Donald Trump e, depois disso, disse que não iria recuar na condução dos inquéritos.
Analistas também acreditam que toda a mobilização de Eduardo nos Estados Unidos e a prisão domiciliar de Bolsonaro não devem acelerar o julgamento do Núcleo 1 da suposta tentativa de golpe de Estado e que o rito deve correr dentro do projetado pelo próprio STF, com julgamento previsto, ao menos para o chamado núcleo crucial, para setembro deste ano.
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Porém, juristas alertam que a prisão domiciliar deve acelerar a tramitação do inquérito que investiga Eduardo Bolsonaro, justamente por ter um dos envolvidos preso, mesmo que de forma domiciliar.
O advogado Matheus Herren Falivene, doutor em Direito Penal pela USP e especialista em colaboração premiada pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), explica que a medida imposta pelo ministro Alexandre de Moraes, ainda que em regime domiciliar, é considerada para todos os efeitos uma forma de prisão preventiva.
“Quando há investigados presos, o inquérito precisa tramitar de forma mais rápida. Caso contrário, se houver demora excessiva, pode haver alegação de excesso de prazo e consequente revogação da prisão”, afirmou.
O caso ganhou força após declarações e movimentações públicas que indicariam apoio do ex-presidente Donald Trump à tese de perseguição judicial contra Bolsonaro. Apesar disso, Falivene vê obstáculos jurídicos relevantes à frente. “Acredito que será muito difícil comprovar até que ponto a eventual atuação de Bolsonaro ou de Eduardo influenciou ações do governo norte-americano. Mas a investigação vai tentar apurar isso com mais intensidade agora”, afirma.
A Procuradoria-Geral da República (PGR) será a responsável por conduzir a análise dos fatos levantados no inquérito e decidir se arquiva o caso ou se oferece denúncia. Para isso, aguarda o relatório da Polícia Federal que deve ser entregue nos próximos dias em que a corporação poderá pedir ou não o indiciamento de Eduardo Bolosonaro, de Jair Bolsonaro e, eventualmente, de outras pessoas.
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Risco de prisão preventiva com descumprimento de cautelares
Com a prisão domiciliar decretada, especialistas em Direito Criminal alertam que há o risco de evoluir para uma prisão preventiva, caso haja entendimento de Moraes de novos descumprimentos de Bolsonaro às cautelares determinadas.
A prisão preventiva está prevista no Código de Processo Penal, pode ser decretada antes da condenação e, caso ocorra, terá de ser cumprida em regime fechado.
Se hipoteticamente acontecer com Bolsonaro, o ex-presidente não deve ficar em uma cela comum nem ser levado a um presídio, mas em uma sala de estado-maior por ter sido presidente. Trata-se de uma instalação especial, geralmente dentro de uma unidade militar ou local reservado, destinada a abrigar oficiais militares de alta patente ou autoridades com prerrogativas especiais de prisão, como é o caso de ex-presidentes da República.
“Isso pode ocorrer em uma estrutura dentro da sede da Polícia Federal, como ocorreu com a prisão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) ou em estrutura nas Forças Armadas, pelo fato de Bolsonaro ter sido militar”, destaca o criminalista Márcio Nunes.
Ele explica que o objetivo da prisão preventiva é garantir a chamada ordem pública, a instrução do processo ou a aplicação da lei penal, quando há indícios de crime e risco de fuga, destruição de provas ou ameaça a testemunhas.
“Essa prisão deve ser reavaliada periodicamente e só pode ser aplicada em crimes com pena superior a quatro anos ou em casos específicos previstos em lei. Não se sabe ao certo o que pode ser considerado pelo ministro uma medida que descumpra as cautelares impostas. Muita coisa pode ser motivo para uma preventiva”, alerta Nunes.
Para o jurista, a prisão domiciliar, embora ainda seja medida cautelar e não pena definitiva, pode ser revista a qualquer momento. Mas, caso Bolsonaro volte a descumprir determinações ou surjam novos fatos relevantes, não se descarta então a prisão preventiva.
“O STF também poderá, a depender da interpretação do ministro Alexandre de Moraes sobre a gravidade das condutas de Bolsonaro ou da necessidade de garantir o que chama de ordem pública, converter em sanções ainda mais severas”, afirma.
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Defesa pode pedir desde habeas corpus, reconsideração da prisão até reclamação constitucional
Quanto ao caminho da defesa, o primeiro passo será recorrer da decisão, como os advogados de Bolsonaro já afirmaram que farão, logo após a decretação da prisão domiciliar por Moraes. Neste caso, o recurso será enviado ao próprio ministro, que pode submetê-lo à Turma ou ao Colegiado do STF. O mais provável é que siga à Primeira Turma, onde o inquérito contra Eduardo Bolsonaro foi instaurado.
A defesa do ex-presidente pode contestar a prisão domiciliar por meio de um habeas corpus — principal instrumento jurídico para questionar prisões consideradas ilegais ou desproporcionais, previsto no Código de Processo Penal.
Além disso, pode apresentar um agravo regimental, caso a decisão tenha sido tomada individualmente, para que seja reavaliada pelo colegiado de ministros da Corte. Também é possível protocolar um pedido de reconsideração ao próprio relator, solicitando a revisão da medida com base em novos argumentos ou fatos; ou ainda uma reclamação constitucional, se entender que a decisão viola jurisprudência ou garantias fundamentais já reconhecidas pelo STF.
“Entre todas essas possibilidades, o habeas corpus se destaca como o recurso mais direto e eficaz neste tipo de situação”, destaca o procurador-jurídico da Associação Nacional da Advocacia Criminal (Anacrim), Marcio Berti.
Segundo Berti, a PGR ainda pode solicitar novas medidas ou apresentar elementos adicionais com base nas provas colhidas durante o cumprimento da prisão domiciliar, das apreensões dos celulares de Bolsonaro realizadas pela Polícia Federal. Neste caso, terá de se aguardar a análise dos dispositivos para identificar se encontra, de fato, algum elemento probatório.
Faliveni avalia a situação como “bem complexa do ponto de vista jurídico”. Ele explica que as medidas cautelares que já haviam sido decretadas há duas semanas, como a tornozeleira eletrônica, a proibição de contato e o recolhimento noturno, eram consideradas graves e já estavam a apenas um nível abaixo da prisão preventiva.
Para ele, o que Bolsonaro vinha enfrentando com as medidas cautelares já era equivalente a uma prisão domiciliar para fins de “detração”. “Isso significa que o tempo cumprido sob as cautelares e agora à prisão domiciliar poderá ser descontado de uma eventual condenação futura”, descreve.
Para o constitucionalista André Marsiglia, a prisão domiciliar imposta a Jair Bolsonaro é ainda mais grave que as cautelares anteriores e fere diretamente a Constituição, um ponto que deve ser atacado pela defesa. Ele critica o fato de a medida se basear em publicações de terceiros nas redes sociais, o que considera juridicamente ilegal, já que “punir alguém por atos de outros viola o artigo 5º, inciso XLV, da Constituição”.
Marsiglia também aponta que as novas restrições têm perfil de “fishing expedition”, ou pesca probatória, com objetivo mais de vasculhar do que proteger o processo, e sugere que a decisão de Moraes funcionou como “cortina de fumaça” para desviar o foco das revelações da “Vaza Toga 2” – mensagens vazadas pelos jornalistas independentes David Ágape e Eli Vieira, nas quais eles expuseram supostos abusos no Judiciário envolvendo Alexandre de Moraes e sua equipe de trabalho, em condenações relacionadas ao 8 de janeiro.
Ainda assim, caberá ao STF avaliar os recursos que serão eventualmente apresentados pela defesa de Bolsonaro. “O ministro ainda pode recuar na decisão da prisão, levar a decisão sobre a manutenção à Primeira Turma. Tudo também depende do ânimo do ministro sobre o andamento do processo, mas não acredito que vá ocorrer mudanças favoráveis a Bolsonaro”, completa Marsiglia.
Como Moraes justificou a prisão domiciliar de Bolsonaro
Para justificar a prisão domiciliar, Moraes disse que Bolsonaro descumpriu medidas cautelares impostas cerca de duas semanas antes. A nova decisão foi motivada pela suposta constatação de que Bolsonaro estaria influenciando o ambiente digital político, mesmo sem usar diretamente as redes sociais — prática vedada por determinação judicial do ministro. A defesa do ex-presidente nega que isso tenha ocorrido.
A decisão tem como pano de fundo episódios recentes, como a publicação de um vídeo com fala de Bolsonaro por meio das redes sociais do senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) – apagado mais tarde, e manifestações públicas transmitidas ou reproduzidas por aliados, no último domingo (3), durante a realização de manifestações em apoio a Bolsonaro, contra o STF e o governo Lula. Alexandre de Moraes interpretou essas ações como violação deliberada das cautelares e tentativa de obstruir as investigações em curso.
A defesa de Bolsonaro nega que ele tenha violado qualquer decisão judicial e contesta a legalidade da prisão domiciliar, sustentando que se trata de uma punição desproporcional por atos de terceiros.
Com a prisão domiciliar, Bolsonaro permanece recluso em sua residência em Brasília, com restrição a visitas, permitidas apenas a familiares próximos e advogados, desde que com autorização judicial – a menos que sejam pessoas que residam com ele. Ele também fica proibido de usar celulares e redes sociais, dele e de terceiros. Foi autorizada a busca e apreensão de dispositivos eletrônicos.
A prisão domiciliar marca um novo capítulo no processo judicial que envolve o ex-presidente. “Embora temporária, essa medida tem impactos diretos sobre sua atuação política e estratégia de defesa — e pode definir os rumos jurídicos e eleitorais de Jair Bolsonaro nos próximos anos”, avalia Marsiglia.
Paralelamente ao inquérito que culminou com a prisão domiciliar, Bolsonaro enfrenta outras investigações e ações em diferentes instâncias. No Tribunal Superior Eleitoral (TSE), está inelegível até 2030, e no STF responde a inquéritos por suposta participação em organização criminosa, disseminação de fake news, interferência na Polícia Federal e uso indevido da estrutura do Estado para fins políticos.
A ação penal mais avançada — por tentativa de golpe de Estado e abolição violenta do Estado Democrático de Direito — já está próxima de ser julgada, com expectativa de desfecho nos próximos dois meses. Se condenado, Bolsonaro pode ter a prisão decretada por até 43 anos.
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