A internet como conhecemos hoje começou a tomar forma em 30 de abril de 1993, quando o CERN (Organização Europeia para a Pesquisa Nuclear) publicou, em caráter público, as tecnologias por trás da World Wide Web (WWW, a rede, a web, a net, etc.), o sistema que permite a conexão e o livre compartilhamento de informação entre usuários.
Sir Tim Berners-Lee, o físico e cientista da computação e criador da web, a idealizou como uma plataforma aberta a todos, para o compartilhamento irrestrito de conhecimento e informação, e lamenta os caminhos tomados nos últimos anos, com usuários sendo tratados como produtos pelas big techs, e governos cerceando as liberdades de expressão e de acesso por motivos políticos.

O sonho de uma internet livre era, assim como o Inferno, cheio de boas intenções (Crédito: Reprodução/Surfshark)
Um dos arrependimentos de Lee é que para ter o alcance planejado por ele, a web tinha que ser oferecida de forma livre, mas como todo veículo de comunicação, se você não controla e/ou não lucra com ele, alguém vai.
Internet livre, pero no mucho
Neste domingo (29), Tim Berners-Lee publicou um artigo no The Guardian criticando os rumos da web, similar ao compartilhado em 2017; desta vez, o cientista da computação deu maiores explicações sobre por que o CERN, a pedido dele, abriu mão das patentes do protocolo e o compartilhou de forma livre.
A ideia original da World Wide Web foi concebida em 1989, enquanto Lee trabalhava para o CERN, considerada “um pouco excêntrica” por seus superiores; ela consistia em combinar duas tecnologias já existentes, a internet, já uma conexão global entre sistemas acadêmicos e privados, incluindo a ARPANET, desenvolvida pelo DARPA e a primeira a usar o protocolo TCP/IP, e hipertexto, textos interconectados com hiperlinks, ou simplesmente links, se referenciando mutualmente.
O plano de Lee era oferecer uma plataforma de fácil acesso e navegação, diferente do BBS, para permitir a qualquer um publicar qualquer coisa, e compartilhar com todo mundo. Companhias e institutos de pesquisa não seriam os únicos a usufruírem de tal infraestrutura, qualquer um com um mínimo de conhecimento em computação (e com o tempo, nem isso) seria capaz de criar seu site.
A visão de Tim Berners-Lee se alinha perfeitamente com previsões do futuro feitas em 1964 por Arthur C. Clarke (abaixo), e nos anos 1980 por Isaac Asimov: ambos vislumbraram uma sociedade interconectada, que viabilizaria trabalho remoto (incluindo cirurgias), e conhecimento de todo tipo compartilhado com todos, de forma livre e colaborativa.
Para que a web funcionasse como planejado, entretanto, ela não poderia ser atrelada a patentes e royalties, ou seja, o CERN teria que concordar em liberar os protocolos e tecnologias livremente, o que foi feito em 1993; do contrário, empresas se recusariam a abraçar o formato e se concentrariam em soluções próprias, incompatíveis entre si, e o usuário médio, o cidadão comum, seria completamente excluído da equação, e tratado apenas como um cliente, nunca como um criador nos mesmos termos.
O grande problema da visão de Clarke, Asimov e Lee, ela só funciona se todos os envolvidos forem benevolentes e dispostos a trabalhar em prol do bem comum, algo que só existe em contos de fadas.
Na coluna publicada no The Guardian, o prifissional lamenta que a web hoje “não é mais livre”, ao apontar dedos para grandes companhias de tecnologia coletando dados privados de usuários, de forma indiscriminada, sem autorização e sem anonimização, para vendê-los a quem paga mais, incluindo governos autoritários; ele também criticou marmotagens que cobram dados por acesso, e que tratam o usuário como um produto, que não tem controle ou propriedade sobre nada que cria, nem mesmo sobre seus dados pessoais.
Tim Berners-Lee cita que a Inteligência Artificial (IA) é o ponto de virada da vez, e comparou ela com uma criação sua, o algoritmo Charlie, que opera como um assistente que segue leis e regulações da União Europeia (UE), e não coleta absolutamente nada sem consentimento; da mesma forma, o cientista da computação também lembrou do Solid, um projeto de web descentralizada alinhado à proposta inicial da rede, em que os usuários são donos de seus dados e de tudo o que criam, controlando sua distribuição e compartilhamento.
Uma web livre e colaborativa funciona maravilhosamente no papel, mas não resiste à Realidade. Se ninguém controla o que é publicado e cada um pode fazer o que quiser, sempre haverá aqueles que buscarão o lucro em cima de conteúdo alheio, seja coletando dados em troca de acesso e facilidades, que incluem plataformas de criação, do WordPress ao YouTube, do Apple Podcasts à Twitch, you name it.


Várias vezes Tim Berners-Lee atacou empresas que tratam usuários como produtos, e governos que restringem acesso à web (Crédito: CERN)
Ao mesmo tempo, governos também imporão sua necessidade de supervisionar, monitorar, controlar, e se necessário (conforme suas diretrizes), restringir conteúdos e discursos, ou mesmo bloquear totalmente o acesso a produtos e serviços, ou mesmo a web em sua totalidade.
O relatório anual Freedom of the Net, publicado pela ONG Freedom House, anota 14 anos ininterruptos de queda na liberdade na web; o último documento (cuidado, PDF) menciona inclusive o arranca-rabo entre o X e a justiça brasileira em 2024, em que o ministro do STF Alexandre de Moraes ameaçou usuários com multas pesadíssimas, caso ousassem usar VPNs para acessar a rede social e contornar o bloqueio por ele determinado, que durou 40 dias.
De fato, mesmo com o Brasil tendo apoiado a resolução da ONU de 2021 sobre direitos humanos na internet, o país é o segundo da América do Sul em número de interrupções de serviços da web desde 2015, com 6 (5 por leis e uma por protestos), perdendo apenas para a Venezuela; a Índia é a campeã em implementar restrições desde o tratado, léguas à frente até mesmo da Rússia.
Isso sem contar países que possuem soluções completamente à parte, e que restringem pesadamente, ou proíbem completamente, o acesso à web livre por seus cidadãos, como Rússia, China, e Coreia do Norte.
Tim Berners-Lee acredita ser possível restaurar a web ao propósito original, o que essencialmente é uma utopia: empresas continuarão coletando tudo o que desejarem, agora com respaldo governamental apenas para big techs selecionadas, nações autoritárias manterão o cadeado trancado, e o usuário continuará sendo tratado como moeda de troca, sem agência e sem controle sobre nada.
Fonte: The Guardian
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